1 Logística Tecnólogos: Transamazônica 40 anos de poeira

Transamazônica 40 anos de poeira




Quem viaja pela Transamazônica tem a impressão de trafegar sobre um esboço de estrada. O asfalto só existe em trechos esparsos e a sinalização é um luxo inexistente. Nos seis meses do verão amazônico, a falta de chuvas ajuda a secar os atoleiros e o tráfego flui em meio a grossas nuvens de poeira. Centenas de tratores ocupam-se de efetuar reparos em vários pontos. É um ritual que se repete há décadas no período da seca. Nos seis meses seguintes, quando a chuva não dá trégua, a natureza e o tráfego de caminhões se encarregam de destruir o pouco que foi consertado. Acaba a poeira, volta a lama. Os caminhoneiros já se adaptaram ao ciclo infernal. "Quando as mangueiras e castanheiras começam a florir, é hora de voltar para casa", diz o gaúcho Alemar dos Santos, caminhoneiro há três décadas, que trabalha apenas na metade seca do ano. Os atoleiros tornam o frete tão caro que muitas vezes não vale a pena fazer o transporte. Quem insiste acaba por enfrentar um rali na selva. "Para percorrer os mesmos 800 quilômetros, demoro oito dias no verão e 25 no inverno", diz o paraense Antonio Eduardo Figueira, cuja carga inclui peças de motocicleta e combustível. Faz parte de sua rotina passar noites em atoleiros à espera de um reboque.
Solano José/AE
Obra faraônica
Abertura da Transamazônica na região de Altamira, em 1972
A Transamazônica tem mais de 4 000 quilômetros de extensão. Se tivesse sido aberta na Europa, cruzaria o continente de Lisboa a Moscou. O projeto original previa a fronteira com o Peru como ponto final, mas o último trecho nunca foi construído. A parte nordestina, com cerca de 2 000 quilômetros, é asfaltada e pode ser usada durante todo o ano. O governo federal prometeu pavimentar o trecho amazônico com maior população em seu entorno, uns 850 quilômetros, no Pará, até 2011. As obras andam a passo de jabuti, em parte devido a pendengas judiciais. Até agora, estão prontos menos de 200 quilômetros. Mantido o ritmo atual, levará mais vinte anos para o serviço terminar. Só então se pensará em asfaltar os restantes 1 300 quilômetros de chão batido.
A estrada que atravessa a maior floresta tropical do planeta permite uma visão dolorosa das mazelas do Norte brasileiro. No trecho dentro da Amazônia Legal vive 1,2 milhão de pessoas, das quais 66% não têm água encanada e 27% não têm instalações sanitárias. O índice de analfabetismo é o dobro da média nacional. A parte mais próspera é no Pará, onde a floresta derrubada foi substituída por pastagens, fazendolas, vilas e cidades que vivem em função da rodovia. A produtividade das plantações de cacau é a mais alta do país. Mas a distância e a precariedade da estrada tornam o frete cinco vezes mais caro que o do cacau da Bahia, o maior produtor nacional.
Para quem tem urgência, a Transamazônica é um obstáculo. O agricultor José Lázaro Magalhães, de 55 anos, mora em um vilarejo localizado no ponto em que a Transamazônica e a BR-163 são uma só estrada por 110 quilômetros. O médico mais próximo fica a 300 quilômetros dali, em Santarém. Se um de seus dois filhos fica doente no período de chuva, José tem de literalmente se desviar da rodovia. O trajeto até o médico inclui 30 quilômetros de carona no sentido contrário até o Rio Tapajós, para então seguir de barco rumo a Santarém. "Saímos cedo para amanhecer no outro dia no hospital", diz José. Não há praticamente oposição ambientalista ao asfaltamento do trecho paraense. O asfalto vai permitir o escoamento da produção local e melhorar a vida dos moradores. A maioria dos fazendeiros tem título de propriedade de suas terras. A situação é bem diferente no estado do Amazonas. Lá a floresta está praticamente intacta e há poucas comunidades no entorno da estrada. Em parte, isso se deve à dificuldade de acesso. A região tem todos os ingredientes que servem de estímulo à grilagem e ao desmatamento: abundância de terras, estrutura fundiária pouco definida e ausência do poder público. A Transamazônica foi uma das três maiores obras de infraestrutura projetadas pelo regime militar na década de 70, ao lado da Usina de Itaipu e da Ponte Rio-Niterói. Naquele tempo, ninguém achava má ideia ocupar a Amazônia com os agricultores malsucedidos de outras regiões, sobretudo nordestinos flagelados pela seca. Nunca houve um estudo de viabilidade econômica ou de impacto ambiental para justificar a construção da rodovia e a colonização de seu entorno.
Os primeiros moradores da região cortada pela Transamazônica foram festejados como exploradores de um novo eldorado – mas ficou evidente que quase 90% das terras em torno da estrada eram ruins para a agricultura. Quando o goiano Antônio Silva da Costa, 49 anos, chegou ao município de Rurópolis, a 200 quilômetros de Santarém, em 1979, já encontrou os colonos em debandada. Antônio formou uma fazenda a 7 quilômetros da Transamazônica com a compra dos lotes dos assentados que desejavam ir embora. Hoje, ele é dono de 500 cabeças de gado, planta milho e arroz. Mas sua família – são onze filhos, dos quais oito ainda moram em sua casa – sofre com a mesma falta de infraestrutura que afugentou os primeiros colonos. "Passo seis meses ilhado, porque com a chuva é impossível chegar até a rodovia", diz Antônio. O asfaltamento completo da Transamazônica está previsto para ser feito em três etapas. Ao todo, a obra vai custar 2,3 bilhões de reais aos cofres públicos. Isso significa que cada quilômetro de asfalto sairá por cerca de 1 milhão de reais. É caro, mas é o preço a ser pago por quatro décadas de equívocos e falta de planejamento.
A Controvérsia das Estradas Cicatrizes dos nossos erros O asfaltamento das estradas da Amazônia
apressa a devastação do verde e o ritmo de ocupação da floresta. Mas qual é a alternativa?
O asfalto é a garantia de qualidade de vida para milhões de moradores da região

Thomaz Favaro, de Humaitá
www.tyba.com.br
Risco no verde Trecho da Transamazônica:a estrada é um lamaçal durante metade do ano
Vistas do alto, as estradas da Amazônia assemelham-se ao rastro da passagem de um furacão. Estima-se que 80% das áreas de floresta devastadas estejam a menos de 5 quilômetros de uma delas. Não se poderia esperar outra coisa dessas rodovias, pois elas foram criadas nos anos 70 precisamente para abrir caminho para a colonização. Quatro décadas depois, a Amazônia está malservida por estradas esburacadas, atoleiros e toda espécie de obstáculo ao trânsito de pessoas e cargas. Quase metade da malha rodoviária é considerada ruim ou péssima pela Confederação Nacional do Transporte. Outros 40% são apenas regulares. Tal situação coloca o Brasil diante de um dilema. Não se pode tolerar que uma região com o dobro do tamanho do México e habitada por 25 milhões de brasileiros fique à mercê de um sistema viário de padrão africano. Por outro lado, existe hoje a consciência de que a floresta precisa ser preservada e que cada estrada é um vetor de desmatamento. Elas não apenas atraem migrantes, mas também servem de ponto de partida para milhares de caminhos vicinais abertos por madeireiros, garimpeiros e agricultores. O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) calculou que as estradas não oficiais somam 170 000 quilômetros de extensão. Isso significa que, de cada 10 quilômetros de estrada na Amazônia, 7 foram rasgados ilegalmente no mato.
As grandes rodovias foram abertas pelo governo federal, que promoveu a ida de colonos para a Amazônia na década de 70. Hoje, depois de um prolongado período de abandono, as autoridades têm a obrigação de pôr essas vias em ordem, garantindo o bem-estar de quem mora nesses lugares. A dificuldade é como fazer isso e, ao mesmo tempo, impedir que a devastação avance. O governo federal já decidiu asfaltar as três principais estradas que rasgam a Floresta Amazônica – e, no que diz respeito à preservação, seja lá o que Deus quiser. Não precisaria ser assim. Duas das rodovias – a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém – precisam do asfalto com urgência. Elas atravessam áreas densamente povoadas, já bastante desmatadas, e são necessárias para o desenvolvimento econômico e para melhorar a qualidade de vida da população que habita suas margens. O projeto da terceira, que liga Porto Velho a Manaus e atravessa uma região de floresta intacta, se parece demais com os erros do passado e faz total sentido que seja cancelado.
Como a maioria das rodovias é de terra, a temporada de chuva torna o tráfego difícil, quase impraticável, durante metade do ano. Os produtores de grãos do Centro-Oeste brasileiro bem que gostariam de usar a BR-163, que liga Cuiabá, em Mato Grosso, a Santarém, no Pará, como corredor de exportação. Mas o asfalto só existe no trecho mato-grossense. Depois, são 937 quilômetros de estrada de terra. Durante o período de chuvas, os atoleiros impedem a passagem de veículos pesados. "Já demorei trinta dias para percorrer um trecho de 750 quilômetros", diz o caminhoneiro João Juarez Barão, um paranaense que transporta cerâmica para o Pará e retorna com madeira para o Sul e o Sudeste. Por isso, os grãos do norte de Mato Grosso são escoados pelos portos de Santos e Paranaguá, a mais de 2 000 quilômetros de distância. Isso atrasa a chegada da carga aos Estados Unidos e à Europa em pelo menos quatro dias. Estima-se uma perda de 480 milhões de reais por safra devido ao acréscimo no custo do frete. Mais de 800 000 pessoas vivem às margens da BR-163. No norte de Mato Grosso, onde as chuvas são regulares e o terreno é plano, perfeito para a lavoura mecanizada, a área de influência da estrada engloba 50% da produção de soja do estado. Ali fica Sorriso, a capital mundial da soja, com produção de 2,5 milhões de toneladas por ano. No trecho paraense, onde o relevo é acidentado e o asfalto ainda é só uma promessa, os moradores passam longos períodos de isolamento. No inverno, época da chuva, os preços disparam devido aos custos do frete. "Os alimentos ficam, em geral, 40% mais caros", diz Henrique Borges, dono do mercado que abastece o município de Trairão, com 15 000 habitantes, a 350 quilômetros de Santarém. "A demora é tanta que não compensa trazer verdura para a cidade."
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Manoel Marques
Caminho das águas
Balsa navega no encontro
dos rios Negro e Solimões:
90% das cargas transportadas
na Amazônia vão de barco


A Transamazônica, que passa por trinta municípios nos estados do Pará e Amazonas, está em situação igualmente precária. Em seu entorno mora 1,2 milhão de pessoas, a maioria delas no Pará. O trecho paraense concentra 60% da produção de cacau e 20% de gado do estado. Não há argumento ambientalista capaz de justificar a manutenção de tantos brasileiros no isolamento (veja matéria). O caso da BR-319 é totalmente diferente. A rodovia de 877 quilômetros, que liga Porto Velho, em Rondônia, a Manaus, foi aberta em 1973 e asfaltada. Mas, por falta de manutenção, metade da sua extensão foi engolida pela floresta. Hoje, ela só é trafegável nas extremidades, que foram pavimentadas nos últimos anos. Um trecho de 400 quilômetros está praticamente abandonado desde 1988, sem vestígios do asfalto original e com menos de 150 famílias vivendo nas proximidades. A estrada só não sumiu de vez do mapa porque a Embratel faz reparos constantes para poder realizar a manutenção dos cabos que levam os serviços de telefonia e internet a Manaus.
A pavimentação da rodovia é uma proposta antiga e tem forte apelo na capital do Amazonas e no estado de Roraima, pois tiraria a região do isolamento rodoviário em relação ao resto do país. A obra só não avança porque, em junho, o Ibama negou licença ambiental. E com razão, uma vez que a estrada ameaça regiões de floresta que estão intactas – e é melhor que continue assim. A BR-319 corta uma das áreas com maior biodiversidade da Amazônia. "Só de aves são 740 espécies, quase metade do que existe no Brasil", diz o ornitólogo Mario Cohn-Haft, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). As 29 unidades de conservação ambiental propostas para evitar que a rodovia se torne mais um propulsor do desmatamento só existem nos papéis assinados em Brasília. O simples anúncio de que a estrada seria recuperada foi suficiente para atrair dezenas de migrantes. O capixaba Osmar Oliveira, de 36 anos, veio há dois anos com a família com planos ambiciosos: está construindo um hotel com dez quartos no quilômetro 110 da rodovia. "Em dois anos, quando o asfalto chegar, serão centenas de carros transitando por aqui todos os dias", prevê Osmar. Para evitar que isso ocorra, alguns especialistas propõem que o traçado da estrada seja aproveitado para a construção de uma ferrovia. "O trem poderia suprir a demanda econômica e social sem promover a ocupação desordenada da região", diz o biólogo Philip Fearnside, do Inpa. Está aí uma boa sugestão para evitar a repetição dos erros do passado.
Alberto César Araújo/Folha Imagem
Ônibus flutuantes
Os rios são a única via de acesso para centenas de comunidades ribeirinhas,
fazendo dos barcos o principal meio de transporte do Amazonas. São 3 milhões
de passageiros por mês. Na foto, barcos atracados em Manaus





FONTE=VEJA AMAZONIA/tvbrasil

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